quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Para uma avenca partindo

Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.




Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Silêncio

"(...) eu devia me expor a você, sem reticências, sem jogos... mas ao mesmo tempo eu tinha medo de me dissolver, de me perder, de não ser mais eu, mas apenas um ser apaixonado... e tinha principalmente vergonha da minha ansiedade, da minha carência... se eu as exibisse a você, talvez você se assustasse e fugisse... e então eu ocultava os meus excessos, me mostrava distante, forte, blasée... e o que acabava mostrando era um arremedo de envolvimento, mesmo sabendo que isso nos fazia mal... eu odiava a dependência, a sujeição, a espera contínua por uma palavra, um gesto... era como se você fosse Deus e estivesse em suas mãos decidir a minha felicidade ou a minha desgraça... como suportar o fato de estar inteiramente subjugada a você? Como suportar teus atrasos, tua ausência... como ficar à espera e olhar para o relógio e sentir o tempo passar e construir mil histórias sobre o atraso... primeiro te desculpando, depois te acusando e prometendo a mim mesma fazer um escândalo quando você chegasse... e quando você chegava, eu ficava tão perturbada, tão feliz, tão grata, que esquecia completamente a raiva e a humilhação da espera... fico pensando no tempo em que desperdicei tentando dissimular. mascarar minha incontrolável dependência de você... durante meses ocultei minha loucura, me contive, sufoquei, fui civilizada... civilizada na minha fúria, civilizada na minha dor, civilizada em momentos que não devia ser..."


Maria Adelaide Amaral-Teatro Completo 

domingo, 21 de agosto de 2011

Embaixo das suas mil camadas de interesses por tudo. Embaixo das mil peles de ansiedade. Existe o menino que nunca tiro do coração. Saudade. Banshee Beat é a música mais linda dessa tarde. E você o menino que nunca tiro do coração. Saudade. Você achando que sentíamos igual por causa do beijo profundo e do olhar dolorido. Você é o menino que nunca tiro do coração. Saudade. Você querendo tirar foto da minha sala. Como se viver fosse o seu turismo eterno. Você sanduíche e eu uma carne de minhocas apaixonadas. Você fazendo a dança do "levar o lixo lá fora" e eu deixando você ver como tenho medo de gostar. Você é o menino que não tiro do coração. Você querendo mandar fósforo pra queimar o presente que tinha acabado de mandar. Todas as suas grosserias e erros chegam sempre com graça. Você me ligando de madrugada. "Vou te processar se você escrever sobre mim". Eu querendo escrever no céu, no peito de Deus, no meu fígado. Você indo embora dizendo não saber gostar só de mim. Eu pensando apenas que roupa colocaria pra quando você voltasse. O amor corre separado. Você longe de mim por país, por peito, por intenções. E nas músicas, nos livros, nas piadas de youtube, na pele dos outros, na minha ilusão. Você tocando alto o violão, fugindo da foto pra fazer o efeito borrado, me roubando da fila da livraria para um cantinho. Você pra sempre. Em todo espaço, em todo branco, em todo homem, você é o menino que não tiro do coração. Errado, distante, esquecido, apagado e pra sempre. Você me dizendo "não vou te fazer esperar, mas um dia..." Você a desgraça boazinha. Você o "um dia" que não foi quando o dia chegou. Ouço você através de tudo o que é bonito. Toco você em tudo que peço socorro ou só rotina. Você o menino que nunca tiro do coração. Pode ir pra longe, em paz, com ela, sem mim. 

Tati Bernardi

Eu contra...

Meu inimigo não está lá fora, não tem um rosto, um emprego, uma família, não tem sequer um nome, não há nada físico que eu possa xingar, bater e, quem sabe até, em um momento de loucura, matar. A batalha é diária, o sofrimento é latente e o inimigo, uma parte de mim. É a minha parte enferma, o tumor que ocupou a alma, que comprime, sufoca, corrói. Não há um só dia que eu não me coloque de joelhos e me curve para, inutilmente, tentar tirá-lo de mim. Não há um só dia. Nunca consigo. E os dias passam, e ninguém percebe, e eu me sinto cada vez mais refém, um dos lados de uma guerra sentenciada, perpétua, possivelmente, perdida. Estranhamente, as maiores batalhas são contra nós mesmos, contra o que nos tornamos com o passar dos anos. E muitas vezes não há como vencer... ao menos, não sozinhos. Por isso, é possível que o primeiro combate a ser vencido, o primeiro passo a ser dado, seja reconhecer, levantar e gritar o mais alto que puder: “Eu preciso de ajuda.”


Angel.
E como disse Khaled Hosseini, em O Caçador de Pipas, “não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre consegue escapar.”. E por mais que eu queira esquecer, por mais que eu deseje voltar o tempo, jamais vai acontecer. Eu terei alguns dias tranquilos, solitários, dias em que estes pensamentos irão se esconder, mas, na maioria deles, eu terei de conviver com fantasmas que gritam aos meus ouvidos um conjunto de frases que sempre terminam com a mesma expressão. “Não posso fazer nada, então, se vira”. Não sei ao certo o que eu poderia ter feito para que o fim não fosse este, mas, isso não me impede de, todos os dias, pedir perdão.

E a vida é assim... Simples assim.

Angel.
"Digo que perdôo, ofereço cafezinho, lembro dos bons momentos, digo que os ruins ficaram no passado, que já não lembro de nada, pessoas maduras sabem que toda mágoa é peso morto: faz de conta que eu não sofro..."

Martha Medeiros

Levar um fora é poesia pura pra quem se agarra em ver beleza em tudo.


"Radiohead, Chico Buarque, Drummond, o amor, beijar você. Desculpa, mas eu não mexo com alucinógenos". E com isso ele partiu pra sempre. Não sem antes dizer a melhor frase que já ouvi. O elogio mais terrível. O adeus mais lindo. E sair sacudindo seus cachos no sol de inverno.Eu amo demais a mesma pessoa de sempre que não existe. Se um dia eu puder enxergar qualquer pessoa pra fora dessa cena criada e ensaiada e feita todos os dias, eu realmente serei livre pra amar.Eu me relaciono há 32 anos com essa pessoa. Ela vai e volta. E não existe. Eu não amo, eu faço entrevista de casting pra cena que tá na minha cabeça. O escritor sente tanto o que não existe. Intensidade superficial.

Tati Bernardi




Texto retirados de tweets da escritora.